Passages de Paris

  Revue Scientifique de l'Association des Chercheurs et Etudiants Brésiliens en France

Numéro 7—2012
ISSN 1773-0341


[accueil]

DE UM PAÍS AO OUTRO: PASSAGENS ENTRE A FRANÇA E O BRASIL - ENTREVISTA COM MIRIAM PILLAR GROSSI

Arquivo para impressão

 

Vinicius Kauê FERREIRA[1]

Caterina REA[2]

 

 

Résumé: Nous présentons dans cet entretien la trajectoire universitaire de Mme le Professeur Miriam Pillar Grossi. Les principales questions ont trait à sa formation universitaire en France et au Brésil, son insertion dans les mouvements sociaux, et ses réflexions sur l’histoire du champ d’études sur le genre et la sexualité au Brésil et en France.

Mots clés: Trajectoire universitaire, féminisme, études de genre, recherches LGBT

 

Resumo: Esta entrevista aborda a trajetoria acadêmica da Professora Miriam Pillar Grossi. Nela são abordadas  questões vinculadas a sua formação acadêmica na França e no Brasil, sua inserção em movimentos sociais e reflexão sobre a historia do campo de estudos sobre gênero e sexualidade no Brasil e na França.

Palavras Chaves: Trajetória acadêmica, Feminismo, Estudos de Gênero, Pesquisas LGBT

 

 

INTRODUÇÃO

Apresentamos aqui uma entrevista com a Professora Miriam Grossi, realizada por Caterina Rea e Vinicius Kauê Ferreira em 14 de setembro de 2012, em sua residência, em Florianópolis. O objetivo foi conhecer a trajetoria desta professora e pesquisadora que teve forte influência da França em sua trajetoria acadêmica e é uma das pioneiras na construção do campo dos estudos de gênero e sexualidade na Universidade Federal de Santa Catarina e da constituição deste campo de estudos no Brasil. 

Vinicius - Professora Miriam Grossi, seu trabalho no campo dos estudos de gênero e sexualidade é bastante reconhecido no Brasil. Então nós gostaríamos de começar com seu relato sobre o início dessa trajetória. Seu interesse por essas questões se dá já na graduação, ainda no Brasil? Em que contexto e com quais professores?

Miriam – Bom, na verdade, esses estudos de gênero e sexualidade começaram numa passagem que eu tive em Paris, em 1978/1979. Naquele momento, eu estava na graduação no Brasil, fui para a França e fiz disciplinas na École des Hautes Etudes em Sciences Sociales como aluna ouvinte. Fazia curso de Teatro na Universidade de Paris III Censier e comecei a frequentar reuniões de um subgrupo de latino-americanas vinculadas ao Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, que se reunia na Maison du Brésil. Era ainda o período da ditadura militar e também era um momento de luta bem forte do Movimento Brasileiro pela Anistia. Então eu comecei a frequentar o movimento num momento de grandes manifestações. O período de 1978 a 1979 foi um grande momento de lutas pelo aborto na França, e então eu pude acompanhar manifestações do movimento feminista francês, quando eu estava lá. E quando voltei, em julho de 1979, para Porto Alegre - eu estava na faculdade fazendo Ciências Sociais - eu entrei num grupo feminista, que era o Ação Mulher, que já estava se separando, se dividindo, de outro grupo feminista, o MML, Movimento das Mulheres da Libertação. Em agosto de 1979 tinha sido promulgada a Lei da Anistia. E esse grupo no qual eu entrei tinha como característica que a maior parte das participantes era de exiladas políticas e mulheres que tinham vivido nos anos 1970 estudando no exterior e que estavam voltando pro Brasil naquele momento. Eram pessoas que tinham vínculos com o Círculo das Mulheres de Paris, mas eu não as havia conhecido em Paris, eram amigas de pessoas que eu conhecia, pessoas também mais velhas que eu. Também coincidiu com um pedido que nós, estudantes de Ciências Sociais, fizemos à professora Claudia Fonseca, para ela dar uma disciplina sobre gênero, acho que foi em 1980. Claudia tinha feito o doutorado na França e que estava chegando a Porto Alegre como professora visitante na UFRGS. É verdade que, antes disso, no primeiro ano da faculdade, em 1977, eu tinha tido aula com a professora Maria Noemi Castilhos de Brito – que depois morreu de câncer – que estava também chegando em Porto Alegre, vinda com um mestrado na Unicamp. Ela tinha sido aluna da Verena Stolcke, da Mariza Correa, da Sueli Kofes. Ela estava voltando pra Porto Alegre, começando a fazer a sua dissertação de mestrado sobre as mulheres operárias da fábrica de cobertores Fiocruz. Era uma fábrica de cobertores que tinha lá no Rio Grande do Sul, na serra, na região próxima a Caxias. Ela me convidou – e naquela época não tinha bolsa de iniciação cientifica - depois que eu já tinha feito meu trabalho etnográfico sobre uma viagem de trem no interior do Rio Grande do Sul – para eu ir como assistente de sua pesquisa, lá nessa fábrica de Caxias. Essa indústria tinha casas para os operários junto da fábrica. Então a gente começou a fazer contato com as mulheres operárias, que eram de origem italiana, e era nesse momento de transição de uma fábrica que estava perdendo seu poder e num período de mudanças sindicais e no mundo do trabalho. A Noemi havia voltado de seu mestrado cheia de ideias para estudar mulheres e como seu pai havia sido gerente desta empresa, ela tinha contatos lá. Quando a Claudia Fonseca deu a disciplina Antropologia da Mulher, que na verdade tinha o título de Leituras Etnográficas, eu lembro que eu tive de apresentar um texto do Maurice Godelier sobre a dominação masculina entre os Baruya da Nova Guiné, porque era em francês e além de mim, ninguém lia francês na aula e naquele momento a bibliografia que a Claudia tinha era em francês. Bom, nesta época eu já militava no feminismo em Porto Alegre, no Grupo Ação Mulher (GAM) e deste grupo a gente criou o SOS Mulher, que juntou várias pessoas que eram dos movimentos e de vários grupos feministas em Porto Alegre. Era um momento muito intenso, porque isso era início dos anos 1980, tanto em Porto Alegre como no Brasil. E esse momento de grande efervescência política, entre 1979 e 1982 foi um movimento da reabertura política, então tinha muitos movimentos libertários. Nessa época eu participava de um grupo de formação em psicodrama psicanalítica com um psicanalista exilado argentino que estava em Porto Alegre, um dos primeiros psicanalistas lacanianos que apareceu por lá e formou toda uma geração de psicanalistas que depois fundaram a APOA [Associação Psicanalítica de Porto Alegre]. Então juntava tudo isto: tinha essa coisa da psicanálise, do feminismo que era uma coisa super intensa, tinha todo o movimento ecológico que também estava emergindo, e tinha a criação do Partido dos Trabalhadores. É dessa época que eu ia vender pão integral na feira, hoje já muito conhecida, o Brique da Redenção, para juntar dinheiro pra campanha, não sei qual, para criação do PT... Hoje, ajudando financeiramente as campanhas politicas de candidatas que eu apoio eu penso: “velhos tempo quando a gente juntava dinheiro pra campanha vendendo pão integral que a gente fazia em casa”. Porque a gente juntava ecologia (pão integral, que não tinha em nenhum lugar e a gente vendia lá) com outros movimentos. Era um momento que a gente ia muito para bairros populares, que em Porto Alegre se chama de “vila”, porque tinha muito dessa coisa de achar que as mulheres da classe operária é que eram as mulheres da “verdadeira revolução”. Em 1974/1975, eu participava do movimento estudantil secundarista e do grupo que era do MDB Jovem, era o IEPES; Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer e outros intelectuais que eram as lideranças. Então eu participava do IEPES, que era o Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais, que se reunia na Assembleia Legislativa, bem no centro da cidade, na Praça da Matriz. Trata-se de um lugar onde também tinha um teatro onde aconteciam os concertos da PROARTE, que era também um espaço cultural do qual eu participava, era associada, de carteirinha, uma das mais jovens na época. E também ali era do lado da Aliança Francesa, onde eu estudava três noites por semana para me formar no Nancy, curso avançado de francês e onde tinha também uma intensa programação cultural de filmes cult que não circulavam nem podiam ser exibidos em locais muito públicos. Um outro lugar que se frequentava muito, também, ficava a uma quadra dali, que era o Teatro de Arena, onde fizemos também muitas atividades do Grêmio Estudantil do Colégio Israelita, quando eu fui da diretoria, em 1975. Então juntava muita coisa naquele momento e lugar: política, arte, cultura. Como eu participava do IEPES, nessa época, eu já tinha ido muitas vezes a vilas populares, favelas, já conhecia esses movimentos de mulheres de periferias. Eu tinha participado também, como bandeirante, dos clubes de mães de Porto Alegre, que era uma organização meio assistencialista, liderada por assistentes sociais do SESI, como uma tia minha, Maria Pillar, e que ensinava as mulheres a fazer trabalhos manuais (crochê, tricô, artesanato) e que em geral se reunia em igrejas católicas. Estas experiências de ter estado em vilas populares, eu reativei quando me tornei feminista, e passei a ir nesses lugares já com outros objetivos políticos. Nesta época antes de eu entrar na faculdade, não tinha ainda uma questão feminista, era ainda a luta contra a ditadura, movimento estudantil secundarista, IEPES, musica clássica, filmes de arte franceses, muitas coisas misturadas. Eu já era uma militante, desde a adolescência, destes movimentos sociais de resistência à ditadura, e quando fui para a França no final dos anos 1970 é que encontrei o feminismo, que, claro, deu sentido a muitas coisas que eu pensava e fazia sem o titulo de feminista.

Vinicius – Então quando você vai para a França, pro seu mestrado, você já vai decidida a estudar violência contra a mulher?

Miriam – Não, foi assim. Eu acabei a graduação em 1981, e ali eu fiz o pedido pra fazer doutorado, ganhei a bolsa. Eu tinha morado na França pela primeira vez quando eu tinha 10/12 anos, foi quando eu aprendi francês, estudei na escola primária. Depois eu voltei pro Brasil e fiz todo o curso de Nancy. E aí, eu já era professora de francês e dava aula na Aliança Francesa. Eu estava no último ano da graduação e eu fiz o pedido de bolsa pra fazer o doutorado na França e ganhei essa bolsa. Quando eu cheguei lá, eu não tinha feito o mestrado no Brasil – estava saindo da graduação – e aí na Université de Paris V, nas validações de diploma, me mandaram para a Licence, que era Licence-Maitrise, uma composição de certificats, grupo de disciplinas que te formavam em uma determinada área da Antropologia. Eu fiz em Ethnolinguistique porque me pareceu o mais interessante na época. Depois, quando vim a estudar a historia das mulheres na Antropologia francesa, descobri que ali naquele grupo estava um núcleo forte de mulheres que construíram a disciplina na França. E quando fui para Paris V, eu fiz esse projeto sobre o SOS Mulher, mas fiz ainda de um ponto de vista militante, que era minha identidade na época. Aí eu cheguei na França, tive que fazer esse ano que era da Licence-Maitrise, fiz um mémoire, porque tinha que fazer um trabalho. Eu tinha ido com a equipe de professores de Paris V que davam continuidade ao projeto do CFRE [Centre de Formation à la Recherche Ethnologique], que tinha sido criado pelo André Leroi-Gourhan, nos anos 1940/1950 e depois o Roger Bastide tinha sido o responsável. Nessa época, inicio dos anos 1980, eram dois professores responsáveis pelo stage de terrain, Mme Jeanine Fribourg e o professor Robert Cresswell. Era um seminário cuja característica era a iniciação à pesquisa de campo, e isso existe até hoje. Eles levavam uma turma pra fazer uma experiência de campo no interior da França e a nossa turma foi pra Jocelyn, um vilarejo na Bretagne. Mas os outros colegas todos que estavam ali nunca tinham feito pesquisa de campo, e eu já tinha feito inúmeras quando estava na graduação na UFRGS. Aí, lá eu fiz essa pesquisa que foi o meu certificat d’ethnolinguistique, sobre alimentação na Bretagne. Eu comia com as pessoas, via o que eles preparavam, fiz um estudo comparativo sobre classes sociais naquele lugar, como as classes sociais comiam de forma diferente, me detive em algo que depois descobri ser bem importante: a distinção entre comida do dia-a-dia e comida dos dias de festa. Tem toda uma parte desse mémoire no qual eu comparo receitas de comidas e de menus de casamentos, pois na França tem aquela coisa bem formal de alimentação em dia de festa, onde se fica o dia inteiro na mesa comendo pratos e pratos que se sucedem. Mas como eu tinha uma bolsa para fazer doutorado, aceitaram minha inscrição dupla e eu fiz, junto com a maîtrise, o DEA [Diplôme d’Etudes Approfondies], fiz dois anos em um, e como eu estava fazendo o DEA, fiz um mémoire já sobre violência contra as mulheres no Brasil. Então, no final do meu primeiro ano, em outubro de 1983, eu tinha defendido os dois diplomas e vim pro Brasil fazer a pesquisa de campo do doutorado. Mas quando eu voltei em 1983, para o Brasil, apenas um ano depois de ter saído daqui, já era outro momento político, as coisas passam muito rápido neste campo, ou pelo menos quando se tem 24 anos. Era o momento da transição política.Entre 1979 e 1982 foi uma explosão de coisas, como o PT. Já no final de 1983, início de 1984, era um momento bem diferente: o que eu queria estudar já não existia mais, que era o SOS Mulher. Aí eu fiz minha tese indo na casa das pessoas que tinham ido ao SOS Mulher no período de existência no qual eu tinha participado (1980/1982). Buscava os nomes e endereços através do arquivo do grupo e ia atrás das pessoas, em vilas populares da grande Porto Alegre.

Vinicius – E quando você vai pra França, você começa a participar do movimento feminista francês?

Miriam – Quando eu volto em 1982, eu fui à atividades acadêmicas que começavam a acontecer.Eu fui quase que na primeira reunião do que hoje é o CEDREF [Centre d’Enseignement, de Documentation et de Recherches pour les Etudes Féministes]. Eram sociólogas, que tinham voltado do Congresso de Sociologia da ISA [International Sociological Association] que tinha acontecido no México; lá tinha sido a explosão dos estudos sobre mulher, que elas chamavam de “rapports sociaux des sexes” porque se apoiavam na premissa sociológica de “relações sociais de sexo”. Não sei como eu fiquei sabendo que ia ter essa reunião lá em Paris VII –Jussieu, mas eu fui. Eu me lembro muito bem, estava começando, mas elas eram todas mais velhas do que eu, francesas, doutoras na sua maioria e eu era jovem, brasileira, recém começando meu doutorado. Era um pouco assim... elas eram amigas e se conheciam, tinham militado nas grandes barricadas francesas, sei lá [risos]. Então eu não me sentia muito bem no grupo mas aconteceu uma coisa imediatamente depois desta primeira reunião: teve um grande encontro, que é o marco dos estudos na França, que foi o Encontro Nacional dos Estudos Feministas em Toulouse em dezembro de 1982, onde foi criada a ANEF [Association Nationale des Etudes Féministes]. Eu estudava todo dia na Bibliothèque Marguerite Durand, que é a biblioteca dos estudos de gênero e feministas, que agora é na rue Tolbiac, no 13eme, mas que na época ficava bem em frente ao Panthéon, na Mairie du 5ème, no segundo ou terceiro andar. Era um lugar lindo, com aquelas coisas parisienses, que tu pisa no chão e faz clec clec clec, era uma espécie de sótão, com uma janelas de onde se via os telhados. E lá a Marguerite Durand tinha entregue toda a sua coleção de livros e documentos e a Mairie du 5ème cuidava daquilo. Então a biblioteca era hiper secreta e eram as primeiras pesquisadoras feministas que iam lá. Nem sei como fiquei sabendo da existência mas eu ia lá todo dia estudar. E foi lá que eu conheci um grupo do qual fiquei bem amiga, que era um grupo de estrangeiras, que iam também estudar todo o dia na biblioteca, como era o hábito na época. Aquela coisa: estavam lá todo dia na biblioteca, estudando na mesma hora, na mesma mesa. De vez em quando conversávamos, quando saíamos para tomar um café, ir ao banheiro. E aquelas meninas falaram “ah, vai ter o encontro em Toulouse, eu queria ir”, “vamos quem sabe ficar no mesmo hotel”. Bom, naquele momento, naquele encontro de Toulouse, eu conheci muitas pessoas da minha geração, e jovens estrangeiras e francesas. Quando voltei de Toulouse, naquele primeiro ano de doutorado, passei a ter muita sociabilidade, muitos encontros, porque era isso, tudo estava começando, aquele movimento de pesquisadoras feministas do mundo inteiro que iam estudar em Paris. Foi quando teve o primeiro edital do CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), de pesquisas sobre mulheres, não era gênero, era estudos de mulheres, ou de construção social do sexo, não sei bem qual era o título. Eu nem tive coragem de concorrer. Bom, não era mais movimento feminista, era a pesquisa feminista que se iniciava. Eu participei bem desse início quando as coisas estavam começando a acontecer. O Maurice Godelier era o presidente acho que da área de Humanas do CNRS e foi ele o grande responsável, institucionalmente, pelo financiamento deste campo de estudos. Não porque não fossem acontecer os estudos de gênero na França naquele momento, isto era inevitável historicamente, mas eu acho que se não fosse o fato do Godelier sustentar, politicamente, com o cargo que tinha no CNRS, o campo teria levado mais tempo para se formar, isto de financiamentos e tudo mais. Ele tinha acabado de publicar “La production des grands hommes”, ali em 1982/1983, então ele estava escrevendo sobre a dominação masculina e ele realmente levou aquele processo adiante no CNRS. Então, esse momento que coincidiu com meu doutorado, já era o momento das pesquisas feministas na França.

Caterina – Então, pelo que vejo, na tua trajetória, o feminismo, a questão de gênero, a Antropologia, a militância política vêm juntos desde o início, pois são pontos dados no contexto da ditadura e de tua vida na França. É bem interessante.

Miriam – Essa coisa é verdade, isso tudo esteve sempre junto, são coisas assim bem misturadas, mas também diferentes. Diferentes porque depois vieram outras gerações que entraram no feminismo apenas pela pesquisa. Da minha geração, muitas pessoas no Brasil, que passaram por essa virada dos 1970 pros 1980, foram engajadas desde o início, não tinha como ser separado.

Caterina – A tua paixão pela Antropologia...

Vinicius – E naquele momento quais eram os seminários que você frequentava na França? Os da Françoise Héritier, talvez.

Miriam – A Françoise Héritier não dava aula nessa época. Quando eu fui em 1978/1979 quem me marcou ali foi o Manuel Castels, que dava o seminário sobre movimentos sociais urbanos; o Alain Touraine, o de movimentos sociais, foi o professor que mais me marcou. Fui a aulas do Godelier - levada pela Suely Kofes, que era amiga da Noemi, minha primeira professora que tinha estudado na UNICAMP - mas eu não gostei muito, achei muito difíceis para mim naquele momento. Esses dias, achei as “notes de cours” de um seminário que eu fiz em 1978/1979, em Nanterre sobre Antropologia da mulher. Eu não sei quem era a professora, não era alguém conhecida, mas eu me dei conta de algo que eu havia esquecido, que já tinha tido essa formação básica, inicial, naquela primeira estada em Paris nos anos 1970. E, muito importante, porque eu fazia o curso de teatro, a pessoa que foi a mais importante, o professor mais importante naquela temporada em que vivi em Paris, foi o Augusto Boal, que era professor lá na Université de Paris 3 – Censier; estava exilado. As aulas com ele foram uma experiência muito intensa.Porque no curso de teatro eu tinha professores maravilhosos e lá também se juntava teatro com psicanálise, com as coisas de gênero e literatura, tive um curso sobre o teatro nos países do leste – isto muito antes da queda do muro de Berlim – outro sobre psicanálise e teatro onde lemos toda a trilogia de Edipo Rei e as leituras psicanaliticas sobre a peça. E a gente ia muito ao teatro, fazia parte do curriculum, das atividades que se tinha de fazer fora de aula, como ler um texto, assistir uma peça e fazer um trabalho escrito, discutir em aula. Foi nessa época que eu realmente me tornei uma habituée, que aprendi a ir ao teatro, a entender o teatro como espaço de pesquisa, de reflexão, onde de alguma forma já juntava as Ciências Sociais com esta forma de expressão artística. Nessa época de Paris foi isso. Mas depois vem a Antropologia. Como é que eu fui estudar Antropologia? Não foi na França, porque senão eu teria voltado pra fazer meu doutorado com o Alain Touraine, eu adorava o Touraine. Se fosse para escolher pela empatia com o professor, com o tema, com a abordagem teórica, eu teria ido fazer o doutorado com ele. Mas, no Brasil, quando eu entrei na faculdade em 1977, eu era super militante e eu entrei para fazer Sociologia, claro. Eu nem sabia da existência de Antropologia no curso de Ciências Sociais. Nem sabia, vírgula, eu tinha lido no curso de francês da Aliança, um livro do Lévi-Strauss, Tristes Trópicos e uma colega que tinha estudado Antropologia na Argentina e me influenciou bastante naquele momento. Então eu já tinha ouvido falar em Lévi-Strauss e em Antropologia, mas eu entrei na faculdade, querendo fazer Sociologia. Ai eu tive aula com a professora Maria Noemi Brito, de Antropologia I. Ela também era feminista, ela era militante do PTB, super brizolista e... não sei bem como foi. E coincidiu também de eu assistir no primeiro semestre em que entrei na universidade, em 1977, um evento na Assembleia Legislativa que marcou época – O índio, este sobrevivente, onde escutei o professor Silvio Coelho dos Santos falando em defesa dos índios. Aí foi um caminho sem volta. A Antropologia abriu um horizonte. Eu até tentei ser aceita pelo CIMI [Conselho Indigenista Missionario] para ir para uma aldeia indígena, mas disseram a mim e a meu colega que “éramos jovens e inexperientes”. A Sociologia e a Ciência Política não souberam segurar aquela geração de pessoas que entraram comigo na faculdade no final dos anos 1970. A Sociologia era muito marxista e nós gostávamos do marxismo, mas como teoria não dava conta de toda nossa vida, nossos projetos pessoais de então.

Vinicius – Apesar de a Antropologia ser considerada “apolitizada” naquela época.

Miriam – Sim, mas nós éramos super politizados, talvez não para o mais legítimo, para a esquerda de então, mas para os “novos movimentos sociais”: feminista, ecologista, libertário. Por exemplo, comer pão integral, ser vegetariano, fazer ioga, era uma coisa radical. Tinha um restaurante macrobiótico onde a gente ia comer, e era quase como uma religião, como uma coisa de fé. Na vida cotidiana, junto, é claro, uma coisa fundamental para a minha geração – que para a de vocês já é um dado – era a questão da sexualidade. Porque foi o feminismo que trouxe a abertura para se transar com quem se quisesse, não ser obrigada a casar, ter filhos, ser heterossexual, etc. Transgredir. Isso foi uma coisa fundamental daquele momento, dos anos 1970 pros 1980, e isso era algo que a Antropologia aceitava. O Gilberto Velho nunca foi meu professor, mas adoravamos as coisas que ele escrevia naquela época, que ele orientava: a tese da Maria Dulce Gaspar sobre Garotas de Programa, depois a tese da Maria Luiza Heilborn sobre namoro juvenil, Tania Salem sobre os casais igualitários. Também foi a leitura de vários outros textos nas aulas de Antropologia urbana com o professor Ruben Oliven, que me iniciou na Antropologia urbana. As coisas que a gente lia e escutava, eram coisas que falavam da nossa vida. Enquanto que a Sociologia falava de coisas muito longe, muito distantes, da vida dos outros, da classe operária, do campesinato...

Vinicius – E quando você volta pro Brasil, você começa a dar aula diretamente na UFSC?

Miriam – Não. Eu estudei em Paris V, de 1982 a 1988. Vim muitas vezes pro Brasil. Numa delas, em 1984, eu tive aulas no mestrado em Ciências Sociais da UFSC [Universidade Federal de Santa Catarina] com um professor visitante na pós, que me marcou muito, o Prof. Klaus Wortmann, da UnB [Universidade de Brasilia]; também o contato com as Professoras Anamaria Beck para as questões de gênero, campesinato, cultura da Ilha de Santa Catarina e Ilse Scherer-Warren, que estudava movimentos sociais, foram importantes para mim naquele ano. Nos anos 1980, eu estou escrevendo a tese, mas já estou frequentando aqui no Brasil a reunião da ABA [Associação Brasileira de Antropologia]; na primeira RBA [Reunião Brasileira de Antropologia] que eu fui foi em Brasília, em 1984, já participei do grupo de gênero mas não apresentei nada, só vim a apresentar na RBA depois de ter acabado a tese. Em 1986 abriu o Concurso de Pesquisas sobre Mulher da Fundação Carlos Chagas e eu resolvi fazer um projeto sobre freiras. Porque quando estava no Brasil, eu ia trabalhar, escrever minha tese, num convento perto de Florianópolis. Hoje eu avalio que esse foi outro dos erros de minha carreira, pois eu achei que não podia fazer um projeto sobre a minha tese, que tinha que ser um projeto de pesquisa original, como se a tese não fosse original... Aí eu fiz o projeto de pesquisa sobre as freiras, mas minha tese era sobre violência contra a mulher. E ganhei essa bolsa da Fundação Carlos Chagas, que era na época uma coisa de muito prestígio no campo dos estudos sobre mulher (e posteriormente gênero), mas aí eu tive que fazer essa pesquisa sobre freiras que era uma pesquisa totalmente diferente de minha tese, abordando a temática do mundo camponês e da religião. Então eu voltei para o Brasil, fiquei um ano fazendo essa pesquisa. Quando estava escrevendo este trabalho sobre freiras, fui um dia pra UFRGS visitar uma colega e vi num mural que iria ter um concurso na área de métodos em Ciências Sociais para a FURB [Fundação Universidade Regional de Blumenau], em Blumenau, que era na região que eu estudava, a região do convento e das freiras. Então eu fiz o concurso e passei. E na banca desse concurso para FURB estava o professor Silvio Coelho dos Santos, e foi ali que nós nos conhecemos pessoalmente. Foi graças a isso que eu vim, depois de acabar minha tese, para Florianópolis, ele me trouxe pra a UFSC. Então eu passei no concurso e se juntou mais uma tarefa no meu cotidiano que já tinha a escrita do relatório da pesquisa sobre freiras e da tese sobre violência contra mulher e eu tinha de ir a Blumenau dar aulas de introdução à Sociologia, Antropologia da Arte e outras disciplinas. Dei aula, por um semestre, em vários cursos, pois o curso de Ciências Sociais ainda estava iniciando em Blumenau; consegui uma licença para acabar minha tese, e voltei para Paris, onde fiquei até abril de 1988. Ao acabar a tese, voltei novamente para Blumenau. Em junho, houve um concurso de Antropologia na UnB, e fiquei em segundo lugar, mas só tinha uma vaga. Então, o professor Silvio começou a me pedir pra que eu fosse para a UFSC como bolsista recém doutora pelo CNPq. Na época tudo isto era muito difícil, não era como hoje, com várias bolsas, em todos os níveis. O campo da Antropologia no Brasil tinha, talvez, no máximo, uns 50 doutores Quando eu cheguei no PPGAS da UFSC havia 6 professores doutores. Bom, eram pouquíssimos professores doutores no Brasil, um número super limitado. E o pessoal da UnB, que já tinha um curso de pós-graduação consolidado, começou a tentar conseguir uma bolsa, um contrato de professor visitante, queriam muito que eu fosse pra lá e também recebi um convite de colegas da UFPb, Lourdes Bandeira e Eleonora Meneccuci (que hoje é nossa ministra da Secretaria de Politicas para Mulheres), para ir à João Pessoa como professora visitante. E aí, um belo dia, o Silvio me telefonou - ele era representante de área no CNPq - e disse: “Eu estive ontem com o Klaas Wortmann, na reunião do CNPq e ele me disse que a UFRGS está querendo que tu vás para lá com bolsa de recém-doutora, mas eu quero que tu venhas pra Florianópolis. Tu não queres ficar aqui na Ilha?”. E eu disse “Claro, quero” [risos], e aí ele me disse: “Escreva um projeto de recém-doutor pra tu ficares aqui na ilha”. Foi o Silvio mesmo que me telefonou, porque eu não teria feito sem a demanda dele e eu estava em duvida sobre os outros convites. E aí eu fiz o projeto para esta bolsa de recém-doutora, para finalizar a pesquisa sobre freiras e ganhei a bolsa. Então eu estava em Blumenau e vim trabalhar aqui em março de 1989. Depois fiz concurso e fui contratada regularmente para dar aula aqui; em Blumenau fiquei trabalhando na área de métodos, eu tinha 19 horas em sala de aula por semana; um dia o reitor me chamou dizendo “Ah, você tem doutorado – me mostrou uma carta – e nós temos uma demanda – era da FIESC [Federação da Indústria do Estado de Santa Catarina] local, do Vale do Itajaí – que quer que a gente faça uma pesquisa sobre os acidentes de trânsito em Blumenau, porque está tendo uma grande incidência de operários faltando nas fábricas por conta dos acidentes de trânsito, das motos”. E isso era importante para a FURB, porque as empresas apoiavam seus funcionários a pagar as mensalidades da FURB, pois a maior parte dos estudantes era do setor de secretaria das empresas, e estudavam na faculdade à noite. Ou seja, a FURB tinha todo o interesse em fazer uma pesquisa solicitada pela FIESC. E então o reitor disse “Tu és a única doutora aqui, se tu quiseres, nós vamos te dar – nem eram 20 horas de pesquisa – 10 horas ou 15 horas pra fazer isso.” Aí eu pensei: “Tá, vamos nessa.” Mas eu não sabia nada, nada. Aí eu montei um grupo de pesquisa, foi minha primeira experiência com bolsistas de graduação, ali na FURB, era a primeira turma de Ciências Sociais, alunos que estavam começando como o Carlos Hoffman, Adiléia Bernardo, Marcos Matteudi e outros. Hoje são todos professores, alguns da FURB, outros em vários lugares do Brasil. Eu tinha 30 anos, era quase da mesma idade de muitos dos meus alunos, daquela primeira geração. E fizemos a pesquisa indo aos hospitais, fazendo etnografia, acompanhando as pessoas em casa depois que saiam do hospital, como eram as sequelas, quem os cuidava, como faziam para se virar até voltar ao trabalho. Essa foi minha primeira experiência institucional de pesquisa, que não era de gênero, mas que tinha a ver com o tema porque a gente começou a ver que quem mais se acidentava eram homens jovens, de moto, porque eram trabalhadores das indústrias que usavam este meio de transporte, mais econômico do que carro e também era um momento de desenvolvimento da indústria de motocicletas no Brasil. Aprendi muito com aquela rápida experiência de pesquisa coletiva, sobre um tema novo para mim. Então, em março de 1989 eu fui pra UFSC, e a professora Anamaria Beck, que é uma outra pessoa a quem eu devo muito por estar aqui, me chamou – ela era diretora do CFH [Centro de Filosofia e Ciência Humanas] – dizendo “Agora no mês de março vamos fazer um evento de gênero, sobre a mulher, aqui no CFH”. Eu respondi: “Vamos, vamos”. Aí fizemos, foi o primeiro encontro de gênero no CFH em março de 1989. Foi muito legal, juntou várias pessoas que estavam ali estudando gênero e que não se conheciam. Só para lembrar, este era um grupo novo, pois uns anos antes, em 1984, tinha sido criado um Núcleo de Estudos sobre a Mulher na UFSC, sob influencia da Fanny Tabak, professora do Rio de Janeiro que tinha vindo à UFSC estimular a criação deste tipo de núcleo. Eu estava aqui na época, participei da criação do núcleo, ele existiu durante um certo tempo mas em 1989 já não existia mais.

Vinicius – Era um núcleo da UFSC, de professoras da UFSC?

Miriam – Da UFSC, de estudantes de pós-graduação, na época só tinha mestrado na UFSC. Da primeira leva, tinham participado professoras e estudantes da época, algumas que também tinham participado do Grupo Amálgama, que não era um grupo de pesquisa, era um grupo mais de vivência e de autoconsciência. E a maior parte deste novo núcleo, que criamos em 1989, era de alunas e professoras jovens. Eu nem era professora ainda, eu estava com bolsa de recém-doutora. Mas tinha um grupo das mais velhas, que eram da Letras, a Suzana Funck, Zahidé Muzart e a Carmen Rosa Caldas Coulthard, todas bem reconhecidas e importantes na UFSC. E elas estavam organizando, nesse ano, o 3º Encontro de Mulher e Literatura, que era uma coisa que existe até hoje, encontros sobre a questão da mulher na Literatura. E elas iam fazer o encontro em Florianópolis, e aí elas nos chamaram pra sermos da comissão organizadora, e eu aprendi muito com elas. Eu também tenho uma dívida imensa com essas três professoras da Letras, que não tinham um núcleo de gênero, mas faziam esse encontro e nos ensinaram muito como lidar com as coisas na universidade, na reitoria, pedir dinheiro, organizar e fazer. Eu aprendi muitíssimo com elas. A gente criou esse núcleo, que tinha a sigla NEG (Núcleo de Estudos de Gênero); esse núcleo se reunia toda semana, e gente discutia os trabalhos de todas nós. Durou um certo tempo mas, como no Núcleo da Mulher anterior, as pessoas se dispersaram pois foram fazer doutorado fora e algumas que eram estudantes se foram para outros lugares.

Vinicius – E o NIGS?

Miriam - A gente criou o NIGS em 1991. Hoje a gente vê que sua criação se deu um pouco de trás para diante. O marco de criação do NIGS foi quando a gente foi para o congresso do que hoje é RAM, que na época era ABINHA (Reunião da ABA-SUL) em Curitiba, em novembro de 1991. Na ocasião, a gente fez um grupo do qual saiu o livro “Trabalho de campo e subjetividade”. Fizemos um encontro no qual foram várias pessoas, eram meus orientandos e orientandas que estavam fazendo dissertações em Antropologia, e a gente apresentou várias pesquisas em torno de um tópico que a gente estava estudando, que era a questão da subjetividade e gênero. Então, ali foi um marco: 13 de novembro de 1991, lá em Curitiba. Foi um primeiro momento de criação, mais público, do núcleo que já se reunia uma vez por mês aos sábados, o dia inteiro. Mas o nome NIGS só surgiu muitos anos depois, em 1999, pois até então era só núcleo de estudos de gênero no Laboratório de Antropologia. Se discutiu muito o nome que o núcleo teria e até hoje umas pessoas brincam, lembrando “Ah, podia ter sido Afrodite”, que foi um dos nomes que se cogitou.

Vinicius- É nesse momento as questões LGBT começam a ser trabalhadas junto com as questões do feminismo na UFSC?

Miriam – Não. A primeira disciplina que eu dei na pós-graduação, logo que entrei, em 1989, foi de gênero.

Vinicius – Foi Antropologia da Mulher.

Miriam – Antropologia da Mulher. As questões LGBT eram absolutamente tabu, impensáveis. Eu lembro que quem trouxe, de forma super militante, estas questões, foi o José Gatti, que era professor de Cinema, no curso de Jornalismo. Ele voltou de Nova Iorque, do doutorado, super militante, e eu me lembro inclusive de vários embates, porque ele estava discutindo a Parada do Orgulho Gay, a importância do coming out, e ele mobilizou toda uma juventude no curso de jornalismo. Tinha um grupo ali, de estudantes que se reconheciam como gays e lésbicas, mas era uma coisa mais militante do que de pesquisa mas que hoje avalio ter tido um papel importante para fazer emergir publicamente a questão LGBT na UFSC. A gente trabalhou junto em 1995-1996 num curso de Especialização em Estudos Culturais. Foi, aí, um primeiro momento em que se começou a falar dessas questões graças ao Gatti, que começou a mostrar filmes naquele curso. Foi ali que a gente passou pela primeira vez Paris is Burning, hoje um ícone dos estudos trans. Foi ele quem trouxe o filme dos Estados Unidos e foi ali a primeira vez que eu vi e discuti esse filme. Então, a questão LGBT não era uma coisa nem fácil, nem tranquila. Ela existia, mas também não existia. A gente discutia, fazia leituras, mas não era uma coisa muito politizada, visível. Para mim, foi depois que eu fiz um pós-doutorado na França, em 1996/1998, que eu comecei a estudar parentalidade homossexual. Quer dizer, não era meu projeto de pesquisa pós-doutoral. Eu estava lá e começou a ter movimentações da APGL [Association des Parents et Futurs Parents Gays et Lesbiens] e dos movimentos e opinião pública em torno do PACs [Pacte Civil de Conjugalité]. Eu estava na equipe da Héritier, no LAS [Laboratoire d’Anthropologie Sociale], estudando parentesco. E escutando todo aquele debate público, me interessou estudar famílias de pais e mães do mesmo sexo, com a motivação de eu estar no grupo de estudos sobre parentesco, naquele momento.Aquilo ali foi uma coisa que surgiu de forma muito espontânea, paralelamente à pesquisa que eu estava fazendo sobre a História das mulheres na Antropologia. Mas, só pra lembrar, durante meu doutorado eu ia a muitos seminários, eu tive muita influência, em minha carreira, do que aprendi no doutorado, que não foi só durante o ano do DEA [Diplôme d’Etudes Approfondies], quando se faz os créditos, mas durante todos os anos do doutorado, eu continuei a frequentar seminários, cursos. Não necessariamente só na Universidade de Paris V, onde eu estudei. Depois que terminei o doutorado eu continuei indo pra França todos os anos. Desde 1982, não houve nenhum ano que eu não tenha ido pra França ao menos uma vez. Então eu sempre ia e ficava vários meses, porque antes uma viagem aérea custava caro, e tinha que ir pra ficar muito tempo. [risos] Agora tudo mudou, mas bom... A gente até escreve isso nesse artigo, que acabei de escrever com a Carmen Rial, que foi apresentado em congresso da IUAES [International Union of Anthropological anda Ethnological Association] em Nápoles. A gente estuda a nova migração, que está sempre em movimento. Porque é isso, hoje é tudo mais barato, a passagem é mais barata, internet, telefone a cabo, skype, etc. Naquela época era só carta: tu mandava uma carta, levava uns 5 dias úteis pra ir, e depois a outra pessoa respondia, mais uns 5 dias uteis, no mínimo, duas semanas para se ter uma resposta de uma pergunta que tu fazias numa carta. E era o momento que, em Paris se fazia ligação de graça. Se descobria que lá em algum lugar tinha um telefone público que estava quebrado, e tinha filas de brasileiros pra ligar. Mas no Brasil nem todo mundo tinha telefone, então não adiantava, não era tão fácil assim se comunicar. Porque aqui mesmo, no Canto da Lagoa, nós só tivemos telefone em 1989. Até 1989 não tinha telefone aqui, e a estrada era de terra e nem pegava televisão.

Vinicius – Eu gostaria de pensar um pouco na Journée que fizemos, que estabelece essa perspectiva comparativa entre o Brasil e a França. A tua trajetória fala da consolidação desses estudos nos dois países, os relatos que você faz sobre as dificuldades de comunicação entre pesquisadoras brasileiras e francesas ainda na década de 1990; eles nos fazem pensar sobre o fato de, em 2012, estarmos realizando um evento comparado entre Brasil e França, com pesquisadores de ambos os países e que é transmitido pela internet. Estamos falando de novas formas de se produzir movimentos sociais, no contexto de uma sociedade de redes. Quais são as possibilidades que se abrem, na sua opinião, com esses novos diálogos entre movimentos sociais de diferentes lugares?

Miriam – Eu acho que a última década foi o momento onde se desenvolveram esses estudos sobre sexualidades e eles passaram a ter esse espaço e a existir também na universidade. Foi quando começaram eventos como a ABEH [Associação Brasileira de Estudos da Homocultura] e o ENUDS [Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual]. Também foi o momento da chegada das teorias feministas e queer e toda a influência de autoras como Judith Butler. Eu acho que o que caracteriza mesmo esse momento é essa fluidez, que era algo que eu já tinha no feminismo: as pessoas militantes dos grupos feministas que vinham estudar na universidade e voltavam para o movimento, ONGs, redes nacionais e internacionais. Foi o que os movimentos LGBT assumiram nos anos 2000. Não que não estivesse lá, junto com o feminismo nos anos 1970, mas era muito mais localizado em poucos lugares. Nos anos 2000 é que há uma emergência dessa militância LGBT, da “visibilidade”. O que o Felipe Bruno Martins Fernandes mostra, na tese dele, é que as políticas públicas do governo Lula vão ser fundamentais pra essa visibilidade e para o lugar que esse movimento vai ter. E também é importante lembrar que a gente constrói também esta legitimidade destes estudos, deste campo, no espaço acadêmico. Eu me lembro que, quando voltei de Paris e fiz meu primeiro projeto de pesquisa para o CNPq, sobre essas questões, eu mesma tinha muita dúvida se eu não ia colocar minha carreira em risco, se meu projeto seria aceito pelos pesquisadores do CNPq.

Vinicius – Em que ano exatamente?

Miriam – Início dos anos 2000. Eu estava entrando na representação de área na CAPES. Foi antes, foi depois ou foi junto, não sei. Eu já era uma pesquisadora reconhecida, eu tive o projeto aceito porque eu era uma pesquisadora reconhecida, isso eu sei. Mas eu tinha receio de abrir uma linha de pesquisa sobre isso. Eu trabalhava sobre violência, eu era reconhecida nesta área, já tinha feito muitos projetos de pesquisa. Eu havia feito o relatório sobre violência contra a mulher no Brasil para a conferência de Pequim, então eu tinha todo um respaldo nessa área. Tinha trazido a REF [Revista de Estudos Feministas] para a UFSC, eu era editora da REF. Então eu tinha uma garantia no campo acadêmico, mas ao mesmo tempo, eu lembro que não era uma coisa absolutamente exótica, estranha, estar na representação da CAPES e estudando essas questões.

Vinicius – No encerramento do Seminário Internacional Fazendo Gênero 9, em 2010, foi lida uma moção reivindicando a criação de um comitê de Estudos de Gênero e Sexualidade na CAPES e CNPq. Como você vê as políticas científicas nesse campo no Brasil, atualmente? E também na França? Você falou sobre a atuação do Godelier no CNRS durante a década de 1980; o que mudou? Também é comum ouvir em seminários e eventos franceses que os estudos de gênero ainda não são levados a sério pelas agências de fomento à pesquisa – como ouvi por parte de professores no seminário Politiques des Sciences da EHESS, precisamente sobre as atuais políticas científicas francesas.

Miriam – Essa questão é realmente muito importante e interessante de se colocar. Há duas grandes diferenças, no meu ponto de vista, sobre entre os lugares que esses estudos ocupam no Brasil e na França. Uma é do ponto de vista epistemológico, dessa relação entre ação – militância – e teoria – investigação. No Brasil, isso é legítimo; na França isso é totalmente ilegítimo. Eu lembro quando o Jérôme Courduriès veio aqui pra Florianópolis, e nós mostramos as fotos da parada LGBT, com os pirulitos que fizemos, com frases provocativas no campo dos estudos de gênero e levamos na parada, e ele não acreditava. “Eu não posso imaginar que uma equipe de pesquisadores vá para a parada LGBT se identificando como tal” [risos]. É claro, era uma ação política, justamente de dizer que a UFSC estava lá, presente, apoiando a militância, militando também. E depois que eu ganhei o projeto dessa rede de pesquisa sobre “conjugalidades e parentalidades” junto com o Luiz Mello da UFG e a Anna Paula Uziel da UERJ, eu sempre dizia nas entrevistas que dava na imprensa: “Estes dados são de uma pesquisa financiada pelo CNPq”. Quer dizer, então eu também aproveitei muito da minha legitimidade, do meu recurso institucional, dizendo “Não, isso não é militância, isso é pesquisa”. Então eu acho que essa legitimidade foi muito importante para o campo, no Brasil, e acho que na França essa legitimidade não aconteceu ainda. Até porque o próprio campo militante é super mal visto na França. Por exemplo, Pierre Bourdieu vai escrever “La Misère du Monde” no final da vida dele, quando ele vai pra televisão defender os movimentos sociais, e é um livro, a meu ver bem militante, na forma como traz em formato integral os depoimentos de pessoas que vivem em situações de pobreza, nas banlieus de Paris. E ele é super criticado por suas intervenções políticas públicas; isso eu acompanhei na França. E ele era, então, professor do Collège de France, portanto super legitimado institucionalmente. O mesmo aconteceu com Michel Foucault, mas ele militou algumas décadas antes, depois morreu cedo e esse lado controvertido de sua trajetória desapareceu nas narrativas oficiais sobre ele. Mas os intelectuais que se engajam dessa forma, por mais que haja toda aquela mitologia do “intellectuel engagé”, com Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, isso na França é desqualificador até hoje. Então eu acho que isso é uma diferença: na França isso te desqualifica; e no Brasil isso não te desqualifica. Não é que isso seja obrigatório e que todo mundo faça isso. Mas nós temos pesquisadores de ponta, no Brasil, que estudam essas questões e que são reconhecidos e respeitados. Claro, no caso da Antropologia, a ABA é um bastião importante para a defesa pública dessas questões. Até essa semana saiu mais uma moção de apoio da ABA sobre a questão dos direitos LGBT na proposta de mudança de legislação que está sendo feita por um grupo de juristas. Mas é claro que a ABA também vai-e-vem em suas posições, porque as pessoas que estão lá tem maior ou menor proximidade ideológica, pessoal, com o tema e depende também das pressões que a diretoria recebe das comissões, dos associados. O segundo ponto é a institucionalização: as vantagens que as mulheres tiveram no Brasil. Não gays, lésbicas e travestis, porque as travestis continuam sem nenhum lugar – e está a nossa luta aí pelo nome social. Mas mulheres no Brasil puderam entrar na vida acadêmica nos anos 1970, quando teve o boom mundial no campo científico, e puderam entrar no campo dos estudos feministas, porque era um campo que estava se abrindo. Foi nos anos 1970 que, no Brasil, se abriram para valer as universidade e sobretudo a pós-graduação. Então foi junto com uma geração entrando no mercado de trabalho que se abriu o campo deste mercado acadêmico, de pessoas podendo trabalhar nestas temáticas. Isso foi o que permitiu que as mulheres entrassem nas universidades no Brasil; muito diferente de lugares como a França, onde as mulheres estavam presas em um sistema universitário muito mais fechado porque institucionalizado desde o inicio do século XX. Já estava cheio de homens ocupando todos os espaços de poder e as vagas nas universidades. Então não tinha lugar para mulheres entrarem. Na verdade não tinha lugar nem para homens nem mulheres jovens, enquanto que, nessa mesma época, no Brasil e em vários lugares do mundo, as mulheres entraram no sistema de ciência e tecnologia para valer. Então, essa é uma primeira diferença da entrada das mulheres e do feminismo no campo acadêmico. Não é só que a teoria feminista não entrou e que foi desvalorizada porque era um conhecimento suspeito. Ela deixou de entrar nas universidades porque não tinha onde se alojar, nas cátedras já bem definidas, não havia aposentadorias que liberassem vagas. Então as que vão abrir o campo acadêmico a estas questões são aquelas que já estavam no sistema, como por exemplo a Michelle Perrot, que vai abrir a linha da Historia das Mulheres. Também a Agnés Fine, em Toulouse, que trabalhava com questões clássicas do parentesco, do dote e Françoise Héritier, que começou a estudar questão de gênero nos anos 1990. O livro “Masculin-Féminin” é de 1996, época que fiz o pós-doutorado com ela. E essas coisas são conjunturais, pois elas estavam num lugar acadêmico, tinham legitimidade institucional e se engajaram nessa questão. Mas outras pessoas que ficaram anos estudando isto, de forma sempre mais marginal, não tiveram o mesmo reconhecimento, como Nicole-Claude Mathieu, que é uma teórica feminista francesa, vinculada ao LAS. Então, eu acho que mulheres, gays e lésbicas não entraram no sistema acadêmico francês por suas pesquisas com esses temas. Entraram porque eram pessoas competentes em outras coisas, e deixaram as questões identitárias de lado. Até porque, na França, a vida pessoal e a profissional não se misturam como no Brasil. Essas questões eram assim veladas: “o cara é gay mas não se fala sobre isto”. Não se devia, até pouco tempo atrás. Enquanto que, no Brasil, como a vida pessoal e a vida profissional são muito mais interligadas, você não pode fazer vida acadêmica no Brasil sem uma ampla rede de relações pessoais e sociais. Sem um grupo de pertencimento tu não vais a lugar nenhum. Então aqui, no Brasil, ninguém podia esconder que era gay, lésbica, porque isso eram coisas que eram mais visíveis e também junto com isso estava a coisa da militância. Então, eu acho que essas são as duas grandes diferenças entre a França e o Brasil sobre o lugar destes pesquisadores no campo científico – se reconhecido institucionalmente ou não - e sobre a relação entre produção de conhecimento, se engajada ou não. Então, eu acho que essas são as diferenças. E o que aconteceu na jornada? Eu fiquei super emocionada, para mim, pessoalmente, foi um momento muito forte, muito importante na minha história, na minha trajetória acadêmica, na minha vida pessoal/profissional porque eu acho que foi um momento onde a gente conseguiu, de modo pequeno e pontual, mesmo sendo em um lugar fora do espaço institucional da universidade, na Maison du Brésil, a gente conseguiu trazer muita gente. E a gente trouxe o diálogo que já tínhamos com pessoas que já trabalhavam com a gente, como o Michel Bozon, que já tinha vindo à UFSC várias vezes e trabalha sobre as questões de sexualidade. Também com o Eric Fassin, que é uma pessoas com quem tínhamos uma relação mais distante, mas que já conhecia e que veio prestigiar nosso evento, pessoas como a Ilana Lovy, que é uma das principais pesquisadoras feministas da ciência na França.... eu não a convidei, ela foi porque ficou sabendo.... como Barbara Glowczewski que não estava em Paris, mas mandou vários alunos de sua equipe participarem, outros jovens pesquisadores que vieram de várias universidades de Paris e do interior e até colegas que vieram da Espanha e Portugal, por terem alguma afinidade com o tema, com o Brasil, por quererem se aproximar de nossa equipe, etc. O outro ponto importante foi ter juntado acadêmicos com militantes e isto é a marca mesmo do que nós fazemos no Brasil, juntando universidade com movimentos sociais.

Caterina – Eu fiquei muito impressionada mesmo com isso, professora. Mas lembro que eu convidei as pessoas do SOS Homophobie pra mesa sobre questões gays e ninguém veio. Mas quanto à situação da França, temos que lembrar que a cultura republicana deste pais dificultou muito a tomada de plavra em nome das minorias e grupos particulares, pois isso parece ameaçar os ideais universais da “République” e introduzir um peligro de “comunitarismo”. Ou seja, falar em nome das minorias sexuais, de gênero ou mesmo raciais foi durante muito tempo percebido como algo supostamente incompatível com o universalismo republicano. O Eric Fassin tem reflexões lucidas e pertinentes sobre este ponto....

Miriam – E só pra lembrar, foi muito difícil conseguir que militantes franceses viessem. Os gays, não conseguimos trazer. Houve um embate também entre as trans e as lésbicas. Porque para o campo militante da França, o campo acadêmico é visto como um mal, eles acham que é um perigo, que o movimento vai ser recuperado pela universidade. Então, eu acho  que Journée foi um marco por ser um evento acadêmico-militante, com impacto para os dois lados, França e Brasil. Os vídeos de grupos acadêmicos e militantes que a gente recebeu do Brasil e mostrou no início de cada sessão também foram muito impactantes, pelas coisas que disseram, pela forma que cada um escolheu para falar de seu grupo para um público francês.

Vinicius – Então, de algum modo, o movimento brasileiro está produzindo algo no contexto francês?

Miriam – Não sei se está produzindo, mas eu acho que quem foi ao evento percebeu o impacto. Essa coisa, a gente nunca vai saber se teve impacto real mas do nosso lugar, a gente produziu, a gente acha que foi legal, que veio muita gente. Estava aquele frio horrível naquele auditório modernista onde a calefação funcionava mal, num dos dias mais frios do inverno em Paris, e mesmo assim as pessoas ficaram lá até o final. Eu acho que essa de articular movimento e academia, é uma característica importante brasileira que a gente trouxe para contribuir com os estudos franceses. Nosso lugar foi mostrar que a gente cresce muito no campo acadêmico, na pesquisa, se a gente dialoga com o campo militante. Porque o campo militante está na vanguarda da vivência, da experiência concreta que permite a gente teorizar melhor... Por exemplo, por que eu acho que é tão importante ter no NIGS pessoas com muitas diferenças identitárias? Negros/as, pessoas com deficiência, pessoas trans, lésbicas, gays, héteros, brancos, pessoas vindas de diferentes origens sociais, de escola pública, de escolas privadas, de elite, do interior, de experiências cosmopolitas internacionais, etc. Eu acho que a presença destas diferenças obriga todo mundo a repensar seu lugar no mundo, seu lugar de conhecimento. As pessoas que nunca se viram como diferentes, brancos, héteros, sem deficiência, de elites intelectuais, podem repensar seu lugar de poder adquirido sem pensar, pela presença de pessoas bem diferentes delas na equipe. Nesse diálogo, também os “diferentes” que estão mais acostumados a viverem entre os diferentes (eu sou lésbica vou ficar com as lésbicas, eu sou trans vou ficar com as trans, etc) se defrontam com outras formas de se colocar no mundo e aprendem também com os que chamo de “branquinhos” e com outras experiências de vida subalternas. Eu acho que o que a gente consegue fazer no NIGS é um projeto político e teórico, ao por para trabalhar juntos e dialogar essa/es pesquisadora/es que vêm desses vários lugares. O que acrescenta para a teoria? Acrescenta a experiência da pessoa que é negra e que sabe o que é racismo porque é negra e vive o racismo no seu cotidiano. A pessoa é trans, que compartilha sua experiência cotidiana e obriga também o grupo a lidar com ela quando atua na área de gênero. A pessoa que tem a experiência da deficiência auditiva mostra também para os outros, que eles agem como se ela não existisse quando falam olhando para outro lado, com a mão na boca, muito rápido. Para um jovem, branco, de camadas médias, que estuda na UFSC com mesada da família e tem a bolsa só para seus gastos de lazer, é muito bom ver e ter de se confrontar no cotidiano com outro colega, no núcleo, que precisa pagar todas suas contas e sobreviver o mês inteiro com a bolsa de 400 reais e às vezes até ajudar a família com sua bolsa. O que estas diferenças nos ensinam? Que eu até posso teorizar sobre a vida de outros grupos, mas eu não saberei qual é experiência real de viver na subalternidade ou no espaço de poder se não for confrontado cotidianamente com elas. E aí entram autoras como Joan Scott, com seu texto sobre a experiência enquanto categoria teórica. Eu acho que a experiência é sempre subjetiva e que nosso esforço é conseguir transformar o que é pessoal em coletivo, social, histórico. E aí que surge, não por acaso, o nome de nosso núcleo - Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades –; quer dizer, experimentar subjetivamente um lugar diferente no campo do gênero e da sexualidade, da raça, da deficiência, das múltiplas diferenças. O nome do núcleo ajuda o grupo a pensar que está sempre em um lugar situado nessas diferenças. E ao mesmo tempo, o grupo, nas suas “normalidades”, te ajuda também a relativizar as micro-opressões identitárias. Quer dizer, eu acho que isso é uma experiência concreta, prática e teórica do que a gente faz no NIGS. Eu acho que isso é bastante característico do campo acadêmico brasileiro e existe em outros lugares do Brasil, como por exemplo, lá em Goiânia, no grupo do SerTão. Porque, para nós não é só um projeto político, é um projeto teórico: nós queremos transformar a prática, e produzir conhecimento – teoria - a partir desses lugares.

Vinicius – Pra finalizar, que gostaria que você falasse um pouco sobre o que significa Paris pra você. Você sabe que a Revista se chama Passages de Paris, numa bela referência aos textos de Benjamin sobre as passagens da cidade, então eu gostaria que você falasse um pouco mais especificamente sobre sua relação com a cidade.

Miriam – Eu adoro o nome Passages de Paris porque é um lugar com historicidade, criado no final do século XIX, o lugar onde eu mais vou passear quando estou em Paris. As pessoas vão para Paris e querem conhecer a Torre Eiffel, o Louvre, mas eu sempre levo quem chega lá pela primeira vez para as Passagens, nos Grands Boulevards, porque pra mim foi tão marcante ter lido Walter Benjamin e entender, pela leitura de Benjamin, que é nas Passagens de Paris que se constrói a modernidade, o urbano. Então, pra mim, esse é um lugar que eu gosto muito e tem muito sentido pra mim. Acho também que “passages” significa também esta cidade, Paris, na qual estou sempre passando, às vezes por pouco, às vezes por mais tempo. E isto é o mesmo para muitos colegas e amigos que tenho. Paris é o lugar em que eu mais vivi na minha vida, eu nasci em Porto Alegre, saí de lá quando eu tinha 23 anos pra fazer meu doutorado. Saí e nunca mais voltei. Depois do doutorado vim morar em Florianópolis, onde estou há mais de duas décadas. Eu já tinha morado em Paris quando eu tinha 10 e 20 anos. Paris é o lugar em que eu mais morei. Minha vida hoje está em dois lugares. Eu vivo uma parte da minha vida aqui em Florianópolis, no meio do mato, num lugar onde construímos um projeto ecologista. E aqui na UFSC construí minha carreira, minha equipe de trabalho, meu espaço profissional. E a outra é a vida urbana daquele pequeno espaço parisiense, num bairro que eu gosto muito, que foi o bairro onde eu mais morei em Paris, o 13eme. Na Place d’Italie, eu já tive quatro ou cinco endereços, até comprar nosso apartamento ali.Morei na Cité Internationale Universitaire de Paris, morei em outros lugares mais pontualmente, mas o lugar onde eu mais morei é ali na Place d’Italie. Então, Paris pra mim é isso, minha segunda vida. Segunda não, é a minha vida dividida em duas; metade está lá. Lá é o lugar onde eu vou ao teatro, a exposições em museus e galerias, que eu vou a museus, que eu vou à bibliotecas, à seminários e colóquios. É também o lugar da sociabilidade acadêmica e intelectual com o mundo brasileiro e internacional. Em Paris, eu encontro a maior parte dos meus colegas brasileiros e muitos com os quais fiz amizade pelo mundo, pois é lá que eles passam sempre em algum momento da sua vida e é lá que a gente se encontra.


 

 

[1] Vinicius Kauê Ferreira est Etudiant en Master d’Ethnologie et Anthropologie Sociale à l’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris, sous la direction de M. Jean-Claude Galey. Développe une recherche sur la constitution de l’anthropologie en Inde, en s’intéressant par certains mouvements théoriques contemporains en Inde. Détenteur d’une licence en Sciences Sociales à l’Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brésil, où il a participé d’un certain nombre de projets de recherche et extension universitaire dans le domaine des études de genre et sexualités, attaché au Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS). Dans cette période il s’est engagé aussi dans l’étude de l’histoire de l’anthropologie, qui est devenue son object d’étude de master.

[2] Caterina Rea est docteure en philosophie de l’Université de Louvain-la-Neuve (UCLouvain) en Belgique et autrice de nombreux essais parmi lesquels: Dénaturaliser le corps. De l’opacité charnelle à l’énigme de la pulsion, L’Harmattan, 2009, avec D. Beaune, Psychanalyse sans Œdipe. Antigone, genre et subversion, L’Harmattan, 2010 et Corpi senza frontiere. Il sesso come questione politica, il Dedalo, Bari, 2012. Elle est actuellement post-doctorante en études de genre à l’Universidade Federal de Santa Catarina.