Passages de Paris

  Revue Scientifique de l'Association des Chercheurs et Etudiants Brésiliens en France

Numéro 6—2011
ISSN 1773-0341


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Entrevista com a Professora Helena Hirata.[1]

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Passages de Paris - Uma especificidade de suas pesquisas, no campo das relações entre trabalho e gênero, reside na possibilidade de comparação das realidades na França, Brasil e Japão. Gostaríamos de conhecer algo de seu percurso entre esses três países.

 

Professora Helena - Meu pai, que faleceu com 59 anos, foi para o Japão na década de 40. Era nissei, nascido em São Manuel (interior de São Paulo), a cidade do Adhemar (Pereira de Barros, ex-governador de São Paulo). Fazia parte do primeiro grupo de filhos de imigrantes japoneses que concluíram seus estudos universitários, no caso, na faculdade de Direito (do Largo) de São Francisco. Eram sete, dos quais uma mulher e por isso apelidados “os sete samurais”. Receberam uma bolsa de estudos do governo japonês para uma especialização em Direito no Japão. Meu pai escolheu o direito internacional. Foi para lá em princípio por dois anos, mas a guerra estourou e acabou permanecendo dez . Casou-se com uma japonesa, filha de embaixador e, portanto, de uma classe social superior à sua, que era filho de imigrantes agrícolas. Tiveram três filhos e voltaram ao Brasil em 1952, onde nasceram outros cinco irmãos e irmãs. Minha língua materna era a japonesa, porém toda a minha escolaridade foi realizada no Brasil, com exceção do jardim de infância. Assim, falo japonês, mas nunca aprendi a língua escrita, o Kanji, que é ensinado na escola durante dez anos, em período integral; conheço o Katakana e o Hiragana, que são os dois alfabetos fonéticos, além dos quatrocentos kanjis que aprendi em casa, com minha mãe – é preciso conhecer cinco mil Kanjis para escrever e, sobretudo, ler um jornal. Posso dizer que sou semi-analfabeta em japonês; ler exigiria anos de estudo que não tive. No Brasil, não cheguei a estudar em escola japonesa, porque meu pai tornou-se político: era deputado federal e achava que seus filhos deviam integrar-se na sociedade brasileira. Estudar a língua implicaria, a seu ver, conservar em demasiado a tradição japonesa; também não frequentei muito a colônia japonesa.

 

PP - Seu pai foi deputado federal por São Paulo?

 

PH - Sim, por duas vezes. Pertencia à ARENA, após ter feito parte da UDN, onde era próximo dos elementos mais oligárquicos, como (Herbert) Levy, (Roberto Costa de) Abreu Sodré, (Francisco) Resegue. Ou seja, era realmente bastante conservador, o que resultou em muitas brigas entre nós! Saí do Brasil em dezembro de 70, passando pelo Chile para conseguir documentos, pois não tinha nenhum. Cheguei na França, como refugiada política, em janeiro de 71 e consegui o asilo político. Estudei e trabalhei aqui até a anistia, em 1979, mas nesse momento já tinha prestado concurso e alcançado uma boa inserção profissional; assim, não voltei mais ao Brasil, ao menos de maneira definitiva. Na época em que cheguei, em 71-72, havia muitos outros brasileiros exilados, refugiados políticos, correspondendo a várias levas da ditadura; em 73, chegou uma nova leva, desta vez de refugiados brasileiros da ditadura de Pinochet.

 

PP - Já tinha começado seu curso de sociologia no Brasil?

 

PH - Não, no Brasil fiz filosofia. Era aluna do Bento Prado (de Almeida Ferraz) Júnior, que acabou de falecer.

 

PP - Como foi sua atividade política?

 

PH - Comecei a participar do movimento estudantil, em uma corrente chamada “universidade crítica”, que era contra a cátedra. Na época, o Fernando Henrique também se dizia contra a cátedra, afirmava apoiar esse movimento, mas foi depois defender sua própria cátedra, discretamente. Constituímos um grupo e invadimos sua defesa de tese, no anfiteatro de geografia da USP, contestando essa atitude não coerente.

 

PP - Isso se passou em que época da ditadura?

 

PH - Em torno de 68, na época dos maiores movimentos estudantis, em São Paulo como em todo o mundo.

 

PP - O início de seus estudos universitários coincidiu com 1964?

 

PH - Entrei na faculdade de Filosofia da USP em 1965. Em 1964, estava ainda cursando o clássico no Dante Alighieri (colégio tradicional de São Paulo). Como já mencionei, quando cheguei aqui, no começo de 71, não trazia documento nenhum: meu documento de identidade era “frio”, não tinha passaporte nem diplomas. Hoje em dia, nenhuma universidade aceitaria inscrever uma pessoa nessas condições. Naquela época, porém, a universidade de Vincennes (atual Paris 8, em Saint-Denis), perto do Château e da floresta de Vincennes, era muito aberta e permitiram que me matriculasse. Mas a Filosofia não fornecia diploma na época. Não se tratava ainda de um curso reconhecido, porque recém-aberto, embora contasse com alguns dos melhores filosofos franceses, como o (Gilles) Deleuze, o (François) Châtelet, o René Schérer, o (Michel) Foucault. Como não tinha papéis, precisava pelo menos de um diploma. Mudei, pois, para a Sociologia, que era reconhecida. Fiz meu doutorado nessa disciplina sobre o papel do Estado na sociedade contemporânea e estudei o caso do Brasil, do populismo até a ditadura militar. Essa tese em Paris 8 foi orientada por Jean-Marie Vincent, sociólogo que faleceu há não muito tempo, uma pessoa boa, que ajudou muita gente, como no meu caso: alguém que chegou aqui sem nenhum documento, não tinha feito Sociologia, tinha um currículo só em Filosofia. Levei um bom tempo para fazer a tese, porque me sustentava como vendedora em Roissy, numa loja que vendia queijos, vinho etc. Antes de sair do Brasil, tinha pedido e obtido uma bolsa junto ao governo francês mas, como estava militando, desisti dela. Quando fui realmente obrigada a partir, soube que ainda podia contar com essa bolsa, com exceção dos três meses perdidos. Em 73, quando a bolsa acabou e precisei procurar um emprego, vi um anúncio no Le Monde. O aeroporto Charles de Gaulle estava literalmente sendo construído e procuravam alguém que conhecesse português, japonês, francês e inglês, exatamente as línguas que falo. Consegui o emprego: trabalhava sábados, domingos e feriados, 1o de maio, 31 de dezembro, 24 de dezembro, 1o de janeiro, todos os 14 de julho. Não era fácil. O trabalho era emRoissy, a loja fechava às 8 da noite e abria às 8 da manhã do dia seguinte, então entre sábado e domingo você não podia ir a nenhuma festa, nem fazer nada, tinha apenas algumas horas para dormir. Trabalhei assim durante 3 anos, até conseguir empregos temporários no CNRS, inclusive com a Maria José (Garcia) Werebe, trabalhos como a transcrição de suas entrevistas sobre educação sexual nas escolas. Houve um momento em que o CNRS decidiu integrar as pessoas que não possuíam estatuto definido. O pessoal temporário que fora pago, digamos, em 31 de dezembro de 75, podia inscrever-se nesse concurso e justamente, graças à Mariinha Werebe, eu tinha um olerite com a boa data e pude participar e entrar para o CNRS. Aliás, o pessoal que ocupa cargos técnicos precisa ter a nacionalidade francesa, mas há uma cota de pesquisadores que podem ser funcionários estrangeiros. Depois deste concurso, sou, desde 1980, funcionária pública francesa.

 

PP - Quando chegou à França, havia uma comunidade brasileira estabelecida…

 

PH - Muito grande e ativa. Havia uma rede que chamávamos de “grupão”, onde estavam os reformistas e da qual todo mundo participava. Outra rede era o “grupinho”, constituído pelas pessoas da chamada “esquerda revolucionária”. Mas tínhamos atividades com todos os grupos. Por exemplo, todos os anos, na época do carnaval, alugava-se a sala Wagram, onde se realizavam enormes carnavais, cuja renda era enviada em seguida para o Brasil, para as organizações brasileiras. Não sei de que maneira, quem mandava ou para quem ia, mas todo ano fazíamos isso para angariar dinheiro.

 

PP - Chegou a conhecer a Apeb desde sua criação, em 1984?

 

PH - Lembro que até hoje devo guardar uma brochura de capa verde de um congresso ou seminário, organizado pela Apeb, do qual participei. Expus minha pesquisa sobre as empresas japonesas e francesas no Brasil e a variável “cultura” na organização do trabalho. Durante todo um período, recebia algum material ou ouvia falar de algum evento ligado à Apeb. Depois não tive mais notícias, até ser convidada em 2003 para participar do conselho consultivo da Revista Científica.

 

PP - Como foi a passagem, na Sociologia, para o interesse pelas questões de gênero?

 

PH - Quando entrei no CNRS, em janeiro de 80, comecei a trabalhar sobre um projeto chamado “Aspectos Sócio-Técnicos e Organizacionais das Empresas Multinacionais Francesas e Japonesas no Brasil”. O objeto de estudo eram as filiais das empresas japonesas e francesas no Brasil, em diferentes ramos. O objetivo era precisamente estudar a gestão do pessoal, a organização do trabalho, a tecnologia etc. nessas grandes empresas multinacionais. Observei que os homens e as mulheres não tinham os mesmos postos, funções e salários. Havia uma desigualdade bastante grande entre homens e mulheres dentro da empresa, como a que se encontra na sociedade.

 

PP - Que influência especial teve sua formação precedente como filósofa em seu trabalho na Sociologia?

 

PH - As pessoas que fazem Filosofia mostram-se geralmente capazes de exercer em qualquer domínio, pois a Filosofia tem um caráter amplo: é o aprendizado de um tipo de pensamento crítico, de um quadro teórico que pode ser utilizado em qualquer ramo, como o jornalismo ou a Sociologia. Por exemplo, no caso das entrevistas, em seu aspecto qualitativo, a Filosofia pode abrir competências não-formais, não-técnicas, nessa área. Por outro lado, é preciso reconhecer também que há lacunas na minha formação, na medida em que uma graduação de quatro anos em Sociologia  fornece elementos específicos na disciplina, particularmente no que diz respeito ao tratamento estatístico, quantitativo dos dados, bem como à leitura sistemática de certos textos básicos.

 

PP - Sua tese pertencia então ao campo de uma sociologia mais política?

 

PH - Sim, era uma tese de Sociologia política, que abordava o papel do Estado contemporâneo. Na parte mais teórica, utilizava como referência Marx, Hirsch, Altvater, Jean-Marie Vincent, uma série de teóricos do Estado e estudava depois a evolução do Estado no Brasil, desde o início do século XX, o populismo, a Ditadura Militar, o período mais recente. Tratava-se pois de uma apreensão da evolução do Estado contemporâneo no Brasil, com uma parte mais empírica, mais concreta e outra puramente teórica sobre o que é o Estado. Quando passei à Sociologia do Trabalho, esta mostrou-me logo que os paradigmas tradicionais da sociologia do trabalho deveriam ser sexuados, porque não existia um ente abstrato, neutro. Para a própria empresa, sua gerência, etc., as pessoas que trabalhavam eram homens ou mulheres e a gestão da mão de obra era diferente segundo o sexo. Acabamos por interrogar e criticar os paradigmas tradicionais da Sociologia, que não distinguia homens de mulheres, fazia uma série de afirmações como se fossem válidas para todos, enunciava categorias aparentemente universais, quando na realidade valiam apenas para os homens e não para as mulheres.

 

PP - Essa problemática concerne à Sociologia em geral?

 

PH - Minha observação fez-se a partir da Sociologia do Trabalho, mas penso que pode-se falar da Sociologia em geral, não existe realmente uma maneira de considerar a questão da sexuação. Trata-se, de maneira muito abstrata, da humanidade, do ser humano, sem tentar pensar as diferenças entre os gêneros.

 

De maneira geral, vive-se um período de instabilidade na sociologia. O processo de questionamento dos paradigmas fortes da Sociologia do Trabalho afetam necessariamente as categorias mais gerais e algumas áreas específicas, como a Sociologia Urbana. A reflexão sobre o meio ambiente e a economia incidem sobre novas formas de pensar em Sociologia geral e do Trabalho. A crise do paradigma marxista, o menor interesse da sociologia francesa por explicações que levam em conta as grandes estruturas sociais e as ações coletivas trazem, como corolário, o retorno do individualismo metodológico, interacionismo, etnometodologia ou uma variante importante na França, a economia das convenções.

 

Penso que é necessário reconceituar a categoria de classes sociais, devolvendo-lhe a sexuação, uma vez que se apresenta como universal, mas está de fato baseada em um modelo masculino e tomando em conta importantes transformações do mundo do trabalho, como a precarização social e do trabalho, “exclusão” e emergência de uma “underclass”, crescimento vertiginoso do terciário etc.     

Nesse sentido, nossa equipe do CNRS (GTM, “Genre, Travail, Mobilités”) desenvolve agora um projeto coletivo chamado Antologia Crítica sobre os Sociólogos e o Gênero, que tenta reler uma série de sociólogos importantes, como Marx, Weber, Durkheim, Comte etc., para examinar como trataram, ou não, da questão das mulheres, ou melhor, dessa diferença entre homens e mulheres.

 

PP - Qual a relação com o Dicionário Crítico do Feminismo?

 

PH - Esse é um trabalho que já realizamos. O Dicionário Crítico do Feminismo foi editado pela Presses Universitaires de France em 2000, com uma segunda edição em 2004; isso significa que foram vendidos pelo menos 5.000 exemplares, porque as duas edições esgotaram-se. Esse dicionario foi também publicado em japonês e em espanhol, e será publicado ainda este ano na Turquia. Atualmente, prepara-se uma terceira edição, com cinquenta verbetes, incluindo “aborto”, “movimentos feministas”, “família”, “trabalho”, “flexibilidade”, “emprego”, enfim, uma série de categorias próximas das utilizadas em Ciências Humanas e, sobretudo, na Sociologia. Porém, é também possível interrogar as Sociologias gerais para ver o que os sociólogos falaram ou não a propósito do gênero,  como podem ajudar-nos a pensar a questão do gênero, mesmo que eles próprios não a tenham analisado, estudado e pesquisado. Trinta autores foram então distribuídos entre pesquisadores detendo um conhecimento especializado de suas obras. Por exemplo, vou ocupar-me de (Robert) Castel. Este nunca menciona de maneira específica homens e mulheres, mas na medida em que fala de desafiliação, de precariedade, de aumento da precarização do trabalho etc., remete-nos à situação particular do emprego precário feminino, mostrando que as mulheres podem servir de cobaias ou prefigurar uma situação para ambos os sexos. Embora essas situações apareçam inicialmente de maneira indistinta nas teses do Castel, tentarei mostrar a evolução de seu pensamento a partir da ótica do gênero, que ele mesmo não utiliza. Os trinta diferentes sociólogos, em geral sociólogos homens que não trabalhavam com a questão do gênero, serão analisados para revelar em que aspectos foram úteis para o pensamento feminista e, ao mesmo tempo, em quais outros foram cegos para a questão. Tratamos, pois, da sociologia “normâle, que aliás é o subtítulo: questões sobre a sociologia normâle.

 

PP - Sua mudança para uma abordagem mais feminista deu-se na França ou corresponde a uma posição presente anteriormente ?

 

PH - Não no Brasil, porque lá considerávamos que o principal era a luta contra a ditadura e a luta de classes. A opressão das mulheres era uma questão que viria depois, quando a questão das classes estivesse resolvida.

 

PP - Pensava-se até que essa questão se resolveria naturalmente?

 

PH - Sim. Vimos, por exemplo, com a evolução da União Soviética que, mesmo com a existência de relações de produção que não fossem ultracapitalistas e com mudanças políticas, permanecia exatamente o mesmo tipo inegalitário de divisão social do trabalho. No Brasil, sobretudo, não havia grupos feministas no interior das organizações de extrema esquerda ou, como se dizia, de esquerda revolucionária, voltadas para a luta de classes e a ditadura do proletariado. Na França, pude justamente conhecer tais grupos: todas as organizações políticas de esquerda ou extrema esquerda tinham uma reflexão feminista e achavam que a luta pela libertação das mulheres fazia parte do conjunto das outras lutas. Essa posição foi muito bem teorizada por Danièle Kergoat, socióloga do nosso laboratório. Kergoat afirmava que não há uma relação social mais ou menos viva ou intensa do que outra e é difícil desvincular a opressão de classes da opressão de gênero, raça etc. Criou o conceito de “consubstancialidade”, onde há integração de todos esses elementos. Não se pode então separar a luta feminista da luta de classes ou da luta contra a opressão de raças, nem hierarquizá-las, como se fazia nos anos 70, nas organizações políticas. Tive aqui a oportunidade de ter contato com militantes ao mesmo tempo políticas e feministas, que levavam adiante a luta das mulheres ao mesmo tempo que eram de esquerda. O movimento feminista francês, que chamamos de movimento de tendência universalista, parte da idéia do universalismo, quer dizer, homens e mulheres devem ser tratados no campo da igualdade, ter direitos iguais e portanto deve haver uma espécie de reivindicação nesse sentido. As feministas francesas, nos anos 70, apresentavam uma grande influência das correntes marxistas. Pesquisadoras como Christine Delphy, que consideramos fazer parte do chamado feminismo socialista, militam pelo socialismo ao mesmo tempo que são bastante radicais como feministas. Nos Estados Unidos, paradoxalmente, fala-se muito em French feminism, que corresponde ao feminismo de Hélène Cixous, próxima de (Jacques) Derrida, Luce Irigaray, Julia Kristeva, feministas que denominamos “essencialistas”: consideram que homens e mulheres tem características diferentes e complementares, mas são duas entidades irredutíveis uma à outra. O universalismo não seria então possível. O paradoxo é que esse French feminism não é a corrente majoritária na França e, sim, o feminismo chamado de luta de classes, socialista, que acredita na universalidade de direitos. Por exemplo, as essencialistas, hoje em dia, são a favor da prostituição, que seria um trabalho como qualquer outro e deveria ser reconhecido e legitimado como tal – são “regulamentaristas”. A maioria das feministas francesas é contra essa posição; não consideram a prostituição como um trabalho, mas uma violência que deve ser abolida – são as “abolicionistas”. Existem assim duas posições sobre a prostituição no feminismo francês, como no brasileiro, que são absolutamente contraditórias e antagônicas. No Brasil, o feminismo realmente começou a desenvolver-se a partir do Ano Internacional da Mulher, instituído pela ONU, no México, em 1975. A partir daí, surgiram as primeiras revistas e jornais feministas, como Brasil Mulher ou ainda Nós Mulheres. Como aqui na França havia, na época, muitas refugiadas, exiladas políticas, criou-se um grupo chamado Círculo de Mulheres Brasileiras, em 77 ou 78. Tenho contato, quando vou ao Brasil, com várias pessoas que estavam nesse Círculo, comoLena Lavinas, no Rio ou (Maria) Betânia (Ávila), hoje responsável por uma ONG chamada S.O.S. Corpo, em Recife, que dá formação a mulheres de classes populares.

 

PP - Em que termos tem-se dado seu intercâmbio com o Brasil?

 

PH - De um lado, tenho parcerias universitárias. Por três anos foram mantidos acordos bilaterais atraves do acordo CNRS-CNPq e também atraves de um acordo CAPES-COFECUB. Atualmente, temos um acordo FAPESP-CNRS. Por outro, guardo uma série de contatos menos acadêmicos, por exemplo com as mulheres da CUT, que se organizam em uma rede sobre direitos reprodutivos, trabalho etc., com participantes da Federal da Bahia, da Federal de Pernambuco, da UNICAMP. Quem coordena essa rede a nível nacional é Maria Ednalva Bezerra, da secretaria de mulheres da CUT. Participo de sua reunião nacional anual e quatro textos meus, como resultado desses seminários, fazem parte das atas publicadas. Tenho, também, parcerias mais acadêmicas, dentro dos acordos que o CNRS mantém com vários organismos brasileiros, como o CEBRAP, a UFRJ, Unicamp, USP etc. e, ao mesmo tempo, tenho relações com grupos sindicais e ONGs, como a S.O.S. Corpo, já citada e a SOF, a Sempreviva Organização Feminista, de São Paulo, que desenvolve um trabalho similar.

 

PP - Como considera a situação atual quanto à divisão do trabalho doméstico entre o homem e a mulher, nas diferentes classes sociais?

 

PH - Num país como o Brasil, em que existe a possibilidade de ajuda de empregadas domésticas, nas classes superiores, intelectuais etc., a tensão em torno da divisão do trabalho doméstico é menor; não há essa luta constante entre o homem e a mulher. Na França, o emprego doméstico é menos difundido do que no Brasil, embora essa situação esteja evoluindo. Quando escrevi meu livro editado pela Boitempo, “Nova Divisão Sexual do Trabalho?”, minha visão era que, enquanto não houver uma mudança nessa divisão entre homens e mulheres no trabalho doméstico, não haverá mudança no terreno profissional. As desigualdades no campo profissional continuarão a existir, porque a maior parte do trabalho doméstico permanece a cargo das mulheres. Segundo estatísticas francesas, 80% do trabalho doméstico é efetuado pela mulher e 20% pelo homem. Quando se examina de perto, os 20% de trabalho doméstico masculino consistem em fazer compras, buscar os filhos na escola ou levá-los, fazer pequenos consertos em casa e a jardinagem! Enquanto isso, as mulheres são responsáveis por todo o trabalho doméstico repetitivo e pouco agradável, o “trabalho sujo”, como limpar o banheiro...

 

PP - Qual é a situação no Japão?

 

PH - Pode-se dizer que é pior. Comparando Brasil, França e Japão no terreno do trabalho doméstico, nas famílias onde há marido e  mulher que trabalham, com filhos em idade escolar até uns 13, 14, 15 anos, vê-se que, aqui na França, os homens assumem 2 horas e pouco de trabalho doméstico diário, para 4 horas e pouco de tarefas ao encargo das mulheres. Enquanto que, no Japão, as mulheres assumem 4 horas e pouco de trabalho doméstico por dia e os homens apenas 20 minutos! Praticamente, seria o tempo de chegar em casa do trabalho, pegar uma criança no colo e passá-la de volta para a mãe, quando ela começa a chorar...

No Japão, o nível de desigualdade no terreno doméstico é pois muito grande e essa situação parece difícil de mudar. As mulheres são educadas, desde o berço, para serem altruístas, generosas. Devem praticar o Care, isto é, o cuidar: cuidar dos outros, das crianças, dos velhos, dos doentes. Isso significa que os homens podem ser egoístas, porém criativos, intelectualmente produtivos. Como dizia a Virginie Wolf, você precisa de dinheiro e um quarto só para si para poder criar e escrever. Enquanto as mulheres continuarem considerando que lhes cabe inteiramente o trabalho do Care, terão pouco espaço para a criação e os homens disporão de um espaço natural para isso, pois ser egoísta, na mulher, é um defeito horrível; já o homem que fecha a porta para poder estudar não será considerado egoísta: estará desempenhando sua função, que é trabalhar intelectualmente. Enquanto essa diferença persistir no terreno da divisão do trabalho doméstico, é impossível haver mudanças consideráveis no terreno da igualdade profissional. É o que tento desenvolver no livro da Boitempo sobre divisão sexual do trabalho, com base em minhas pesquisas sobre empresas e indústrias. O que resultou evidente é a relação entre a família, o espaço doméstico e o terreno profissional, dificilmente dissociáveis, tanto para as mulheres como para os homens.

 

PP - Um pergunta de atualidade: o que acha dessa candidatura de uma mulher à presidência da França?[2]

 

PH - Sucedendo-se à eleição da Michelle Bachelet no Chile, de uma presidente na Libéria, da Angela Merkel, à possível candidatura de Hillary Clinton, penso que é realmente importante, porque abre a discussão sobre o poder e as mulheres. Por outro lado, não é o caso de fixar-se no fato de ser uma mulher, é preciso pensar no programa, nos objetivos. Segolène tem uma certa sensibilidade em relação à questão da situação das mulheres, em particular as violências exercidas sobre elas, mas acho que seu programa não é declaradamente feminista.

As mulheres e o poder são muito dissociados. Na França, hoje em dia, nas empresas  “CAC 40”, nem 5% de mulheres PDG (Président-directeur général); nas altas esferas de poder econômico, são pouquíssimas as mulheres. Se não me engano, Zillah Eisenstein, politóloga americana e também feminista, afirmou algo interessante: o fato que tantas mulheres apareçam nas esferas altas do poder significa justamente que está havendo uma transnacionalização e uma globalização em curso, em que os homens se posicionarão nas esferas transnacionais, enquanto as mulheres se colocarão nos espaços nacionais. Estas aparecerão como presidentas ou primeiras-ministras dos Estados nacionais, mas o poder já estaria se deslocando, dentro dessa perspectiva da globalização, para entidades supranacionais, que são as multinacionais etc., onde as mulheres continuam pouquíssimo representadas. É uma hipótese interessante; não sei se verdadeira, mas interessante.

 

PP - A tendência é que esses altos cargos de poder nacional se tornem decorativos...

 

PH - Exatamente. Não é aí que se exercem nem a economia, nem o poder econômico e, conseqüentemente, o poder político com P maiúsculo. Esses já estariam imigrando para outras esferas. Mas é sempre uma boa surpresa ver que em um grande partido como o socialista existe um casal e é a mulher quem se candidata à presidência. Não como no caso do Clinton, que já foi presidente e a mulher tentará sê-lo em segundo lugar. No caso da Ségolène e do Hollande, este pretendia ser candidato e poderia tê-lo sido, porque é o Primeiro Secretário, como fora antes o Jospin, mas a partir do momento em que houve as escolhas, deu-se conta muito rapidamente que a mulher teria muito mais chances do que ele. Isso é realmente interessante.

 

 

(Entrevista realizada por Rodolpho Bastos, Sérgio Queiroz e Eva Landa)

 

Helena Hirata é atualmente Diretora do Laboratoire GTM (Genre, Travail, Mobilités) no CNRS, além de responsável de um Master Recherche do Departamento de Sociologia da Universidade de Paris 8 - Vincennes - Saint-Denis, onde orienta teses de doutorado. Autora, entre outros, de:

 

Autour du « modèle » japonais. Automatisation, nouvelles formes d’organisation et de relations de travail. (éd.). Paris: L’Harmattan, 1992. Dynamiques d’entreprises. Traduzido em português, Sobre o « modelo » japonês, ed. EDUSP:1993.

 

Femmes et partage du travail (org.). Com D.Senotier. Paris: Syros, 1996, 281 p., Alternatives Sociologiques.

 

Les transformations du travail. Amérique Latine, Asie. Com B. Lautier e P. Salama, número temático da Revue Tiers Monde, n. 154, avril-juin 1998, t. XXXIX.

 

The Sexual Division of Labour Re-examined, com D. Kergoat, in J. Jenson, J. Laufer, M. Maruani (edited by), The Gendering of Inequalities : Women, Men and Work, Aldershot, Burlington USA : Ashgate, 2000, p. 69-79 (original em francês 1998; trad. espanhola,1998, alemã, 2001, portuguesa, São Paulo : Ed. SENAC, 2003).

 

Dictionnaire critique du féminisme (coord.) Com F. Laborie, H. Le Doaré, D. Senotier. Paris : PUF, 2000, 299 p. 2° edição aumentada, 2004 (trad. espanhola, Madri : Sintesis, 2002 ; japonesa, Tokyo : Fujiwara Shoten, 2002) .

 

Nova divisão sexual do trabalho ? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade, São Paulo: Boitempo, 2002, 335 p.

 

Femmes et mondialisation, in Femmes, genre et société, l’état des savoirs, (dir.) M. Maruani, Paris: La découverte, 2005.

 

Les paradigmes sociologiques à l'épreuve des catégories de sexe: quel renouvellement de l'épistémologie du travail? , em colab. com Danièle Kergoat,  in Les ressorts de la mobilisation au travail. Durand J.P. et Linhart D. (coord.), Octarès Editions, 2005, p. 288-298.

 

Travail et mondialisation, n° coord. com J. Falquet et B. Lautier,  Cahiers du Genre, n° 40, 2006.

 

Mondialisation et rapports sociaux sexués: une perspective Nord-Sud. In Nouvelles luttes de classes. Ed. Jean LOJKINE, Pierre COURS-SALIES et Michel VAKALOULIS. Paris: Presses universitaires de France, 2006, p. 227-240.

 

Para detalhes complementares sobre a obra da autora, indicamos igualmente a leitura de sua entrevista à revista PLURAL, Sociologia USP, São Paulo, 7: 81-110, 1° semestre, 2000.


 

[1] Helena Hirata é atualmente Diretora do Laboratoire GTM (Genre, Travail, Mobilités) no CNRS, além de responsável de um Master Recherche do Departamento de Sociologia da Universidade de Paris 8 - Vincennes - Saint-Denis, onde orienta teses de doutorado.

[2] Decidimos manter a questão, apesar de ter perdido sua atualidade, porque a resposta de Helena Hirata, por sua sobriedade e lucidez, permanece de grande interesse, para além dos modismos.